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"Todos sabemos que cada dia que nasce é o primeiro para uns e será o último para outros e que, para a maioria, é so um dia mais."
José Saramago

sábado, janeiro 05, 2008

A mudança

Aquele seria apenas mais um dia.
Saiu de casa, mala ao ombro e um estilo clássico, com traços fortes de uma vida dura.
Farta dos berros das crianças do andar de cima, que acordavam com fome a meio da noite, e do barulho - a que hoje se chama música - que ouviam os estudantes do andar de baixo; farta das cusquices do porteiro que, apesar de ser homem, controlava a vida dele e de todos os que por lá passavam; farta dos aviões que passava a cada 10 minutos; farta das conversas sem conteúdo do café da esquina e dos piropos inoportunos dos arrumadores de carros e dos serventes, que sempre existiam naquelas bandas…
Dormia sempre de televisão ligada para camuflar tanto banzé e sentir que era vida aquele estado de existência.
À hora marcada, chegava de táxi à morada que recebera por contacto telefónico.
Iria visitar um apartamento, “um achado”, “numa zona muito tranquila”, como terá dito a proprietária que se preparava para o despachar ao mais rápido interessado.
De facto, era um bom apartamento numa zona tranquila dos arredores de Lisboa.
Saiu satisfeita, prometendo ligar dentro de dois dias para confirmar a compra e tratar da papelada.
“Não se vai arrepender!” retorquiu a proprietária.
Saiu e procurou um café. Andou e andou, certa de que o que precisava era tempo para conhecer a zona.
Não se via vivalma.
Uma série de terrenos baldios em desordem, separados por meia dúzia de prédios e edifícios pré-fabricados decoravam a paisagem.
Encontrou então uma tasca, vazia e de mau aspecto.
“Aqui não se fuma!” foram as palavras de boas vindas.
Tomou café e simplesmente saiu.
Chamou um táxi e voltou para o seu bairro.
Passou pelo sem abrigo od costume e lançou-lhe uma moeda; lanchou no café da esquina e subitamente as conversas ganharam interesse; entrou no prédio e logo foi a
bordada pelo porteiro, “está muito bonita hoje”, e sorriu-lhe; até convidou para jantar a velhota simpática que vivia na porta da frente desde sempre, cujo nome nem sabia.
Foi então que aquela mulher de traços fortes percebeu que, afinal, fortes eram os laços que a ligavam àquele bairro e àquelas gentes.
Deitou-se e… naquela noite dormiu de televisão apagada!


…Porque tantas vezes só damos importância ao que já não temos ou estamos prestes a perder…
…Porque tantas vezes a única coisa que está mal é a forma como olhamos o mundo…
…Porque, simplesmente, somos humanos.

8 comentários:

AC disse...

Sem ingratidão não existe humano no animal.

Excelente post Mari!!
Boa surpresa, muito boa surpresa, ler-te registros cinzentos.

Beijo saudoso, abraço envergonhado, e os dois juntos porque te gosto.

Antes Prefiro disse...

este espaço é aconchegante: cheguei, cativou-me a escrita, fui lendo e deixei-me ficar.
gosto da brisa que aqui sopra, vou-te pôr lá na lista da minha "casa", se não te importares!
fica bem **

Anónimo disse...

"Pequenos Gestos Fazem a Diferença"
Todos mudamos...é um facto!
Quem não muda é porque não tem sentimentos, é anti-social ou acha que o mundo gira à volta dele/a.
Procuremos fazer no nosso dia-a-dia com um gesto mudar um pouco do nosso "mundo", vale apena pois faz a diferença e sentimo-nos muito melhor e mais bem dispostos =)

Bjinho

Joanne disse...

Existem coisas tão banais que começam a ser-nos transparentes aos olhos. Porque fazem parte do nosso mundo, porque estão sempre lá e são nossas. O sentimento de posse ou de pertença leva-nos a esquecer muitas vezes, o trabalho de conquista e isso acaba por nos esquecer do contorno das coisas na nossa vida.

João Lambelho disse...

Obrigado pela visita e pelo feedback, conforta-me saber que há quem aprecie a minha (modesta) escrita :)
Volta sempre que por mim já estás adicionada à minha lista de links.

pin gente disse...

mas ainda bem que, mesmo no fim, ainda há quem o saiba reconhecer.

abraço

u João disse...

Olá Mary!Para mudar que seja para melhor, apesar.. eu trocava a pacatez de um arrabalde, com uma tasquinha, pelo barulho e confusão de um lugar assim
Mas,como bem dizes ( é tua a conclusão) muitas das vezes não valorizamos o que temos mais perto.
Beijo

João Lambelho disse...

Fiquei preso a esta história. Não me saiu da cabeça o fim-de-semana todo!